Por alguns minutos, tente se desligar da polarização política que domina o Brasil. Esqueça a narrativa pronta — seja da extrema esquerda ou da extrema direita — e faça sua própria análise. Há tempos estamos consumindo discursos fabricados para manipular massas ideologicamente opostas, repetindo chavões sem reflexão crítica.
O dia 08/01/23 marcou um episódio que extrapolou qualquer limite do razoável: vandalismo, desordem urbana e depredação do patrimônio público. Quem participou deve responder por seus atos. Isso é inquestionável.
Mas aqui surge uma pergunta que precisa ser feita com honestidade: aquele grupo, desorganizado, sem liderança militar ou poder de fogo, teria qualquer capacidade real de derrubar um Estado Democrático?
Tomar o governo por meio da ocupação de prédios públicos — mesmo que fosse um movimento emocional, impulsivo e até irracional — é algo fora do alcance de um coletivo desarticulado, ainda que motivado por paixão política. O que houve foi um ato ilegal, sim, mas longe de configurar um golpe tecnicamente possível.
O que se viu, na prática, foram pessoas inflamadas, muitas vindas de longas viagens, que se depararam com a Esplanada — para a maioria, um cenário antes conhecido apenas pela televisão. Empolgaram-se, cometeram crimes e devem ser responsabilizadas. Mas daí a enquadrar o episódio como o “maior ataque ao Estado Democrático de Direito da História” é, no mínimo, uma narrativa politicamente conveniente.
O Estado Democrático de Direito apoia-se na soberania popular, na limitação do poder pelo texto constitucional e na garantia de direitos fundamentais. Sua sustentação se dá pela separação entre Executivo, Legislativo e Judiciário e pela lógica dos freios e contrapesos.
No cotidiano, porém, a face mais visível desse Estado é a Polícia Militar. Ela é o braço operacional da lei, da ordem e da execução das determinações judiciais. Quando um policial é atacado — sobretudo se a ação é organizada, armada e com o propósito de impedir o exercício da autoridade pública — isso se aproxima muito mais de um verdadeiro atentado ao Estado Democrático do que a invasão emocional de prédios públicos por um grupo desorganizado.
Nossa Constituição trata a vida como direito maior. Mas esse direito não é absoluto: em legítima defesa, a própria lei autoriza sua relativização. E quando alguém atenta contra o Estado — não apenas contra o policial em si, mas contra a estrutura que ele representa — assume conscientemente os riscos inerentes a esse confronto.
Há outro aspecto desse debate que precisa ser observado de forma transversal.
Um deputado estadual, eleito pelas regras do próprio Estado de Direito, é preso por lavagem de dinheiro, compra de drogas e associação ao tráfico — crimes vinculados a uma facção narco-terrorista. Ou seja: utiliza o Estado Formal para operar em favor do Estado Paralelo.
E aqui não há ficção nem exagero. Quem nega a existência de um Estado Paralelo no Rio de Janeiro deve aguardar o Papai Noel: mais de 85% das pessoas que vivem sob domínio territorial do crime organizado são cidadãos de bem, que não encontram outra alternativa. O Estado Formal, por sua vez, tem obrigação moral, jurídica e constitucional de retomar esses territórios.
Agora imagine o impacto de um parlamentar — eleito dentro das regras republicanas — dedicando seu mandato a ampliar, fortalecer e proteger o Estado Paralelo. Ele pode propor leis, movimentar orçamento, pressionar investigações, criar CPIs. Pode agir, dentro do Legislativo, para servir aos interesses da narco-milícia. Uma distorção assustadora do sistema representativo.
A situação se agrava quando figuras públicas ligadas a criminosos históricos anunciam intenção de disputar cargos para “defender o Complexo”. Ou quando deputados se manifestam contra uma operação policial que cumpre mandados emitidos pela Justiça — mandados baseados em leis criadas pelo próprio Parlamento.
O Estado entra na comunidade para fazer valer a lei, e homens armados de fuzis atentam contra a PM — isto é, contra o Estado em sua expressão mais direta. E, mesmo assim, parlamentares defendem aqueles que disparam contra as forças legalmente constituídas.
Fica inevitável a pergunta: esses deputados representam quem? A população de bem ou o Estado Paralelo?
E mais: a que partidos pertencem? Em quais partidos se filiarão aqueles que, publicamente, dizem representar áreas dominadas pelo crime?
A verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito não aconteceu em 08/01.
Ela acontece, silenciosamente, nos primeiros domingos de outubro dos anos pares, quando estruturas criminosas, infiltradas na política, elegem representantes para expandir sua influência dentro do próprio Estado que deveriam defender.
Esse é o verdadeiro atentado — lento, contínuo e institucional.